24 setembro 2010

“Não aceitamos candidatos”



Um dia com Ricardo Young, candidato do PV ao Senado, mostra as amarras da lei eleitoral. Por Felipe Corazza



24 de setembro de 2010 às 9:41h

Passar três meses em viagem pelo País e ser obrigado a pagar todas as suas contas somente com cheque. O que parece o roteiro de um bizarro reality show patrocinado pelo sistema bancário é a rotina de campanha imposta aos candidatos pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). A Lei 9.504, de 1997, e a Resolução do TSE 23.217, deste ano, sustentam o surrealismo que acompanha os postulantes a uma vaga no Executivo ou no Legislativo.

Segundo consta do Manual de Arrecadação e Aplicação de Recursos, “os gastos eleitorais de natureza financeira só poderão ser efetuados por meio de cheque nominal ou de transferência bancária”. A segunda permissão não ajuda em quase nada – difícil imaginar que até o tesoureiro mais previdente consiga programar uma transferência para a churrascaria onde a comitiva resolva almoçar nos próximos dias.
CartaCapital acompanhou uma viagem de Ricardo Young , candidato do Partido Verde ao Senado por São Paulo, a Campinas, a uma hora da capital. Entre compromissos com eleitores, palestras e encontros em companhia da candidata à Presidência, Marina Silva, cada folha de cheque carrega o visco do tormento para os integrantes da comitiva.

No caminho, dois pedágios. No caso, ainda é possível usar dinheiro vivo e justificar os gastos com recibo. O limite, diário, para pagamentos em dinheiro é de 100 reais. Como a conta aberta em nome da campanha não pode ter cartões, o saque deve ser feito com cheque. E a pequena verba só pode ser utilizada para despesas de deslocamento. Resumindo: continua a equipe refém do talão.

Primeiro obstáculo, o posto de gasolina. Apesar do onipresente aviso “Não aceitamos cheques. A direção”, nenhum problema ao pagar o abastecimento dos carros de campanha – cerca de 250 reais. Explica-se: o estabelecimento fica próximo de um comitê campineiro, logo, já desistiu de aplicar a regra durante o período eleitoral.

A entourage de Young relata problemas de pagamentos como soldados a exibir feridas de guerra. “Já precisamos chamar a polícia”, conta uma assessora, “para fazer um hotel aceitar o cheque”. As palavras são premonitórias, como constatará a reportagem mais adiante. Outra assessora: “Uma padaria exigia cadastro com cinco dias de antecedência. Como a gente vai adivinhar essas coisas?”

Além da difícil aceitação, cada folha passada pela campanha precisa ser xerocada para constar do site Ficha Limpa – para os candidatos que dele fazem parte. Poucos estabelecimentos se dão ao luxo de uma máquina copiadora à disposição: “A gente precisava fotografar cada cheque com câmera digital”. Depois de algum tempo, o banco resolveu ajudar e as folhas são escaneadas quando compensadas.

O candidato, bem-humorado, avisa que os pagamentos não são a única chateação. Ao saber que a agenda precisaria ser alterada por conta dos compromissos de Marina Silva, chama o repórter e desabafa: “Você viu isso? Acontece sempre. É quase todo dia”. Uma palestra para estudantes encerra o primeiro dia.

O compromisso promete durar algumas horas e parte da equipe quer aproveitar para descansar. O check-in no hotel exige pagamento imediato. Também pela lei, só dois integrantes da trupe estão autorizados a assinar os cheques. Um é o próprio candidato o outro é o tesoureiro, que não pode abandoná-lo. Cogita-se um cheque em branco, assinado. “Mas eles aceitam cheque? Ah, deixa isso pra lá”.
Ainda no evento, um assessor conta mais uma. Para a visita da candidata presidencial, o diretório local tenta fretar um ônibus. É urgente. Nada feito. Para alugar o veículo pagando com cheque, só passando a folha três dias antes. Mais insistência. “O cheque é da campanha, não tem como ser sem fundos.” O locador se convence.
Depois da palestra, quase meia-noite, chega-se ao ápice do problema. Com reservas feitas em um hotel de baixo custo da Rede Íbis, a comitiva parte para o descanso. Quase todos estão instalados nos quartos quando, para espanto do balconista, o tesoureiro puxa o famigerado talão. “Infelizmente, não posso aceitar.” Alguma discussão, sem acordo, e o rapaz começa a ligar para os quartos dos que já haviam subido, avisando que precisam abandonar as camas.

O primeiro quarto chamado é o do candidato, que pede calma e desce. Young repete a explicação dada pelo tesoureiro sobre as regras da campanha, e ouve a resposta, também repetida, do balconista Wellington: “São as normas do hotel. Não vou perder meu emprego por causa do partido”. O argumento é razoável, apesar de não haver qualquer indicação na parede sobre o veto aos cheques.

A falta de gerente no hotel naquele horário é mais um problema. Um vacilo do rapaz e o respeito ao TSE custará seu emprego na manhã seguinte. Fica acertado que o candidato deixará um cartão de crédito como caução, mas que a situação do pagamento será resolvida com o gerente. Mesmo com toda a aula sobre a lei que rege as eleições, o voto de Wellington não foi ganho. “Eu não voto aqui, voto na Paraíba.” E vão todos dormir.

Pouco sono até o encontro com o gerente, Fernando Oliveira. De início, ele recusa o cheque. Ouve, por algum tempo, mais uma peroração do candidato sobre a lei eleitoral – a segunda em menos de 12 horas. Por fim, com alguma boa vontade, cede e aceita. Oliveira garante que não houve qualquer comunicado oficial das autoridades eleitorais sobre a campanha – e a necessidade dos cheques. “Ninguém avisou nada.”

Meia hora de negociação para o check-in, mais meia hora de negociação na manhã seguinte. Ao tirar uma média dos três meses, o candidato observa o tempo perdido durante o processo: “Deveriam permitir, também, cartão de débito, ao menos”.

Para piorar, a sede do PV foi invadida no domingo 19. Foram levados computadores com dados de campanha, fitas com programas eleitorais, recibos de gastos e – sim, eles – os talões de cheque. Sobre o crime, o assessor jurídico do partido, Laércio Benko, é irônico: “Pode não ter sido crime político, mas o ladrão, certamente, era bem politizado”. A polícia investiga. E segue a marcha até 3 de outubro.